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Os quatro seres viventes: Alusão de Apocalipse 4.6 a Ezequiel 1.5

  • INTRODUÇÃO: A natureza do Apocalipse

Não há outro livro igual ao Apocalipse em sua essência e uso pois ele trabalha como o fechamento de todo o cânon bíblico. Podemos dizer que se configura um resumo de toda a Bíblia e seu conteúdo é como um arremate de um tecido bem feito, é o clímax da revelação de Deus para sua igreja no passado, presente e futuro é também “a revelação, o desvendamento, a exposição da verdadeira Pessoa de Jesus em toda a majestade da Sua pessoa e toda a glória da Sua obra. Este livro é o clímax de todas as magnificentes verdades encontradas nas outras partes da Bíblia” (GUILHERME, 1997, p. 74). Muito se discute sobre sua natureza por se tratar de uma mensagem que exige estudo e cautela para que o estudante encontre a interpretação exata do seu conteúdo. Entender esse conceito poderá contribuir com o leitor em sua busca porque  “a literatura apocalíptica trata da escatologia (ἔσχατος, eschatos, “últimas coisas”). Esse tipo de escrita foi especialmente predominante, de aproximadamente 200 a.C. a d.C. 200, começando com os escritos judaicos e, eventualmente, incluindo a obra dos cristãos.’’ (NEAL, 2020). Então, compreender sua natureza e propósito dará ao leitor a possibilidade de entender sua mensagem que é apresentada logo no início,  porque,

“O Apocalipse de João, nos seus dois primeiros versos, daria, como paradigma, os quatro pontos da estrutura típica desse gênero: uma revelação que é dada por Deus; a transmissão se dá por um mediador; o receptor é um visionário; os temas tratados dizem respeito a eventos futuros. Seu marco social também é tomado do livro do Apocalipse, em 1,19: esclarecer aos eleitos aquilo que ainda há de acontecer, servindo então de coragem e conforto numa época de opressão, com o intuito de manter a fidelidade deles” (HANSON, 1976, p. 27). 

Segundo Rotz (2015) “o Apocalipse é em primeiro lugar e princi­palmente uma mensagem à Igreja, à noiva’’. O mesmo autor diz que o livro requer estudo criterioso que usa seriamente o universo simbólico e a história dramática sem ceder a uma rejeição das imagens difíceis ou literalismo. 

Muito se tem discutido sobre o gênero e o estilo do livro do Apocalipse, e podemos destacar que essa discordância não impede que bons pesquisadores encontrem o sentido hermenêutico correto. Carson (1997) diz que este livro é muito parecido com uma carta, mas em sua forma geral e introdução, é um livro apocalíptico. João faz uso extensivo do simbolismo para transmitir sua mensagem apocalíptica, ele não está preso ao fio comum do gênero apocalíptico, distinguindo assim sua obra de outras obras apocalípticas existentes.

  • O que é uma alusão

É comum encontrarmos textos na Bíblia que fazem referência a outros textos, autores citando outros autores, isso ocorre com frequência. Muitas dessas expressões são chamadas de ‘’alusões’’, as mesmas são usadas para dar força ao argumento do próprio autor. Essas referências ou boa parte delas são retiradas do Antigo Testamento e também ocorrem com alguma força no Novo Testamento, mas como definimos uma alusão?  De acordo com Beale (2003), pode-se definir “alusão” como uma expressão breve deliberadamente pretendida pelo autor para ser dependente de uma passagem do AT. Diferentemente de uma citação do AT, que é uma referência direta, a alusão é indireta (a redação do AT não é reproduzida diretamente como na citação)”. A alusão é uma referência indireta, praticamente certa ou provável, embora não tão material quanto a citação explícita. Em outras palavras, para se identificar uma alusão, é necessário atestar a existência de “um paralelo incomparável ou único de redação, sintaxe, conceito ou conjunto de motivos na mesma ordem ou estrutura. Quando se encontram tanto uma redação (coerência vocabular) quanto temas singulares, a alusão proposta ganha maior probabilidade” (BEALE, 2013, p. 56). Sendo que o Apocalipse não faz citação ao AT, dar atenção a alusões torna-se importante e eficaz para sua correta interpretação, como veremos mais adiante.

  • Quantas alusões há no livro do Apocalipse

Há um número considerável de alusões no livro. Embora possam existir várias opiniões sobre um valor exato. “No Livro do Apocalipse, por exemplo, em que não há citações formais, o número das alusões varia de 394 (UBS3) a 635 (NA26), chegando a 1.000”. (BEALE, 2003, p.55). Mostrando que João além de ser conhecedor dos escritos do AT, faz uso desse recurso para discorrer sobre os assuntos que propõe escrever, o que torna muito comum seu uso por boa parte dos autores bíblicos.  Notamos que há várias propostas quanto ao número de alusões no livro e para tanto não chegaremos a um consenso aqui, porém voltamos a destacar que elas existem e são importantes para compreensão da mensagem apocalíptica.

  • Exemplos de alusão

Reid (2007) diz que as alusões são em grande quantidade no Apocalipse  e que o livro não tem nenhuma citação direta do AT. Mais um motivo lógico de que entender o processo de alusão é a chave fundamental para interpretação das palavras de João e torna-se assim um dos requisitos para quem deseja aprofundar-se em seu conteúdo. Vamos tomar como exemplo o texto de Isaías 65:17-25 onde o mesmo autor diz que

“[…] não é ainda a descrição dos novos céus e da nova terra, conforme encontrado em Apocalipse 21-22. Em Isaías 65:20, a morte ainda está presente. Veja também Isaías 65:23 e 66:23-24. Isto é uma profecia condicional para Israel, apontando para uma condição quase ideal que nunca se cumpriu em uma escala local, mas que aguarda o cumprimento final em uma escala universal conforme se encontra em Apocalipse 21-22.’’ (REID, 2007. p.118).

Outro exemplo é o cenário de Apocalipse 4.1-11 e Ezequiel 1.1-10 onde ambos os profetas recebem uma visão de uma cena impressionante, incomum ao pensamento humano, descrevendo em detalhes o que viram e este será o assunto de análise doravante.

Quando colocamos os textos de Apocalipse e Ezequiel em paralelo notamos uma variedade de palavras e expressões semelhantes, os autores usam praticamente a mesma estrutura para discorrer o assunto apresentado, veja o quadro comparativo abaixo e note as semelhanças dos termos encontrados nas duas passagens.

  • Paralelo temático
 

APOCALIPSE 4.1-8

EZEQUIEL 1.1-14

Termos e palavras semelhantes

  • céu, 
  • aberta,
  • dizendo,
  • achei-me em espírito,
  • relâmpagos, 
  • quatro seres viventes, 
  • o rosto como de homem, 
  • semelhante a leão, 
  • semelhante a novilho,
  • semelhante à águia
  • Do trono saem relâmpagos
  • céus, 
  • abriram, 
  • palavra do Senhor, 
  • a mão do SENHOR, 
  • relâmpagos, 
  • quatro seres viventes, 
  • seus rostos era como o de homem, 
  • rosto de leão, 
  • rosto de boi,
  • rosto de águia 
  • dele saíam relâmpagos

Em ambas as passagens encontramos a mesma descrição do que os profetas viram, dando indício de uma clara alusão, exceto quando falam das asas dos seres viventes, João diz que os seres tinham quatro asas e Ezequiel menciona seis asas (Ap 4.8, Ez 1.6).  É basicamente neste ponto do Apocalipse que começam as visões, nas quais são mostradas, sob figuras, as forças pelas quais a vida da igreja é afetada, porém vamos nos deter de agora em diante em Ap. 4.6, passagem esta que João usa para aludir  em Ez. 1.5.

  • Paralelo verbal

Existem três palavras hebraicas da qual advém o termo que a Septuaginta traduz como ζῷον: seres viventes conforme mostrado no gráfico abaixo:

A tradução, então, seria de ζῷον (zoon): animal, ser vivo e a mais aceitável é criatura (sobrenatural) — um ser sobrenatural compreendido segundo as características dos seres vivos. Passagens relacionadas que falam de  “criaturas vivas”.

          Ap. 4.6  τέσσαρα ζῷα

          Ap. 5.6  τῶν τεσσάρων ζῴων καὶ

          Ap. 5.8  τὰ τέσσαρα ζῷα καὶ οἱ εἴκοσι τέσσαρες

          Ap. 6.1  καὶ ἤκουσα ἑνὸς ἐκ τῶν τεσσάρων ζῴων

          Ap. 6.5  τοῦ τρίτου ζῴου λέγοντος·

Referências da Septuaginta: Gn 1.21; Sl 67.11; Sl 103.25; Jó 38.14; Sb 7.20; Sb 11.15; Hc 3.2; Ez 1.13–15; Ez 47.9 e também a passagem de estudo deste artigo, Ez 1.5. Esta tem sua raiz no verbo grego ζάω (zao): viver com o equivalente na palavra hebraica חַיָּה (ḥǎy·yā(h)) que a LXX traduz por ζῶά: exército, habitação em Salmos 67.11 como mostrado no gráfico acima, nos dando uma sugestão de que estes seres são do exército do Senhor e que sua habitação é ao redor do trono onde adoram e servem a Deus, porém isto pode não fazer sentido porque ḥǎy·yā(h) (חַיָּה) também é traduzido pela LXX como animais, feras e seres, e o mesmo substantivo tem sua raiz no verbo חָיָה (chayah) traduzido como estar vivo, viver, portanto o que Ezequiel viu em sua visão, e o mesmo podemos dizer de João foi os “seres viventes”, estranhos e de aparência incomum, e no caso de Ezequiel, nunca vistos antes, que adoravam a Deus ao redor do seu trono.  É importante destacar a ocorrência ζῷον feita pela LXX  em Ez. 1.5 comprova a alusão feita por João, pois o paralelo entre uma palavra e outra é o mesmo como já comentado neste artigo.

  • A alusão (Ap. 4.6 – Ez. 1.5)

As quatro criaturas vivas que tinham muitos olhos “antes e atrás” (Ap. 4.6) têm uma sugestão de algo que se aproxima da onisciência, mas o fato de serem criaturas limita isso. A visão de Ezequiel 1 é tão semelhante a esta que podemos afirmar e aceitar o que é revelado ali como tendo a mesma aplicação na visão de João, evidentemente uma alusão a mesma. Por algum tempo, ao que parece, Ezequiel se perguntou o que eram as criaturas vivas; mas em uma visão posterior foi lhe dando a interpretação do mistério. Então ele disse: “São estes os seres viventes que vi debaixo do Deus de Israel, junto ao rio Quebar, e fiquei sabendo que eram querubins” (Ez. 10.20)

Podemos seguramente deixar de lado, portanto, algumas interpretações antigas que dizem ser estes como os quatro evangelistas, Mateus, Marcos, Lucas e João segundo o pensamento de Santo Irineu ou os quatro principais signos do Zodíaco, como alguns, a mencionam. Não há praticamente nada que possa ser totalmente conhecido sobre esses seres vivos que estão na presença de Deus. A descrição de João do que ele viu nesta visão do trono de Deus não é uma representação fotográfica, mas uma visão que tinha a intenção de impressionar, como foi no Sinai ao pronunciar Deus sua Lei a Israel, evidenciando que Ele, assim como na cena mostrada a João, se apresenta de uma forma espetacular. Nas duas visões a cenário apresentado está no contexto de adoração, embora Ezequiel não tenha mencionado o trono no começo de sua visão, João vê e escreve sobre ele logo no início dando ênfase na adoração cósmica manifesta, que consiste no panorama universal do trono e a sua volta, as criaturas e posteriormente no capítulo, os vinte quatro anciãos que também se prostram e adoram aquele que está sentado no trono.

Ezequiel, ao receber a visão, contempla apenas vestígios do que realmente iria acontecer quando o Cordeiro se levantaria para abrir os selos mostrados na sequência do capítulo 4 de Apocalipse, é por esse motivo que João faz alusão aos seres viventes mencionados no AT, porém com detalhes não mencionados anteriormente onde se diz, por exemplo, que: 

“E os quatro seres viventes, tendo cada um deles, respectivamente, seis asas, estão cheios de olhos, ao redor e por dentro; não têm descanso, nem de dia nem de noite, proclamando: Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus, o Todo-Poderoso, aquele que era, que é e que há de vir” (Ap. 4.8). 

Conforme lemos em Ap 4.8 estes seres, adoram a Deus dando-lhe glórias pelo que Ele foi e é, proclamando a sua vinda, um grande quadro de adoração observado também na visão de Ezequiel retratando o mesmo panorama. Devemos lembrar que as visões não são apresentadas a eles como realmente são, porque segundo o Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia ”os quatro seres viventes não representam criaturas aladas reais com as características animais citadas” (DORNELES, 2014)  e nem Jesus, segundo Timm (2022), tem a forma de um cordeiro que tenha sido morto. Concluímos que, as visões tinham o objetivo de causar grande admiração, tanto que Ezequiel ficou muito impressionado (veja Ez. 4.18, 4.22) com a aparência delas.  Allison diz que:

“A descrição em Apocalipse 4 e 5 é de uma cena celestial (4:1); o lugar é o santuário celestial. Encontra-se ali o trono de Deus (4:2); existem sete lâmpadas (4:5); mencionam-se taças de ouro cheias de incenso (5:8); e o Cordeiro está presente (5:6). […] Um dos propósitos dessa visão é derramar luz sobre a entronização de Cristo como rei e sumo sacerdote no santuário celestial”.

Cristo entrou ali para cumprir seu ministério de restauração e de onde irá declarar “Tudo está feito […]” (Ap. 21.6). O mesmo não ocorre com Ezequiel, que vê os seres e os descreve. Visivelmente não há escatologia na visão, tanto que no final de toda sequência das cenas Deus lhe dá uma missão local (Ez. 2.3), porém para João é dado conhecer a missão escatológica do Cordeiro, o único digno de abrir os selos (Veja Ap. 5.1 e 5, Ez. 2.9-10) e de ser adorado, como mostrado subsequentemente no seu relato, tanto que Osborne comenta que esse título de Cordeiro, ”[…] se volta totalmente para a grandiosa vitória escatológica de Cristo como cordeiro pascal sobre a cruz. […] Ele vence, porém, por meio do autossacrifício, por ser o Cordeiro que foi morto, recebendo a adoração dos seres viventes e dos anciãos” (OSBORNE, 2014, p. 39). Note que ”os quatro seres viventes aparecem repetidamente no cenário celestial […] Estão constantemente ocupados na adoração e louvor a Deus” (4:8; 5:8; 5:14; 7:11; 19:4) (BARCLAY, 2015, p.186), nos fazendo entender que papel e propósito desempenham. Os mesmos também faziam parte da decoração do templo de Salomão nas paredes e nos lugares de oração, sugerindo serem símbolos de  adoração e louvor a Deus. Em ambas as visões, especialmente em Apocalipse, é observado o maior exemplo de adoração cósmica, que atinge seu auge em Ap 4.7 e a nota tônica é; Deus está assentado no trono e tanto querubins, como todos, devem prostrar-se e adorá-Lo.  Estes seres, ”são parte da cena e do imaginário celestiais. Não são representações que o autor do Apocalipse tenha inventado” (BARCLAY, 2015, p. 187), portanto, é uma clara alusão que João faz à cena de adoração em Ezequiel, com acréscimo de detalhes relacionados ao tempo do fim. 

Referências:

GUILHERME, W. Orr. 66 Chaves para a Bíblia: Um Manual Prático para Estudo Bíblico, Primeira edição. São Paulo: Ebr Editora Batista Regular, 1997.

NEAL, D. A. Apocalyptic Literature, Introduction to. In J. D. Barry (Org.), Dicionário Bíblico Lexham. Bellingham, WA: Lexham Press, 2020.

HANSON, Paul D. Apocalypse, genre; Apocalypticism. In: CRIM, Keith (Ed.). The interpreter’s dictionary of the Bible. Nashville: Abingdon Press, 1976. 

CARSON, D.A., Douglas J. Moo e Leon Morris. Introdução ao novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1997. 

Almeida Revista e Atualizada. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

ROTZ, Carol. Novo Comentário Bíblico Beacon: Apocalipse. Rio de Janeiro: Central Gospel, 2015.

DEDEREN, Raoul. Tratado de Teologia. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2011.

BEALE, G. K. Manual do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento: Exegese e interpretação. São Paulo: Vida Nova, 2003.

REID, George W. Compreendendo as Escrituras. Engenheiro Coelho: Unaspress, 2007.

BRANNAN, Rick. Léxico Lexham do Novo Testamento Grego. Bellingham, WA: Lexham Press, 2020.

TIMM, Alberto R. Lição da Escola Sabatina: Vida, Morte e Eternidade. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2022.

DORNELES, Vanderlei. Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia, v.7. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2014, p. 861.

BARCLAY, William. Apocalipse: O Novo Testamento Comentado por William Barclay.  Tradução: Carlos Biagini, p. 186-187.

É bacharel em Teologia pela Faculdade Adventista do Paraná, além de formação em Desenvolvimento Web e Design Gráfico, adquirida nas escolas Udemy Academy e Stand By. Também é especialista em Marketing Digital pelo Núcleo Expert FNO. Atualmente, atua como Colportor de Carreira na Associação Pernambucana da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) em Recife, PE. Além disso, está cursando um MBA em Gestão de Projetos.

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